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A destinação da gorjeta nos bares, restaurantes e afins
A gorjeta é do trabalhador que a recebeu ou de todos os empregados?
Há divergências sobre a destinação da gorjeta: alguns defendem sua distribuição entre todos os empregados, enquanto outros argumentam que ela pertence somente ao empregado que a recebeu do cliente, geralmente o garçom.
Para esclarecer a quem pertence a gorjeta oferecida pelo cliente, buscou-se inicialmente uma legislação que assim a definisse. E encontramos no caput do artigo 457 da Consolidação das Leis do Trabalho ( CLT) uma orientação clara e precisa tanto literal, lógica e histórica sobre essa questão, estipulando que a gorjeta é de propriedade exclusiva do empregado que a recebe. In verbis: “compreendem-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber”.
No contexto do caput do artigo 457 da CLT, a palavra “receber” refere-se especificamente às gorjetas obtidas pelo empregado dos clientes e não do empregador. A lei leva em conta a intenção do cliente em recompensar diretamente aquele empregado que prestou o serviço. Portanto, é o cliente quem determina o destinatário final da gorjeta, quem merece, e isso fica evidente na norma.
Embora em alguns casos a gorjeta possa ser recebida pelo operador de caixa, gerente ou outro funcionário, estes somente executarão um trabalho administrativo, formal, impessoal, obedecendo à gestão da empresa para otimizar o trabalho, e não por merecimento.
Gorjeta em dinheiro ou cartão
Historicamente, esta situação é ainda mais saliente, considerando que, à época da redação da norma (1943), os pagamentos eram predominantemente realizados em espécie. Assim, as gorjetas eram em espécie e entregues diretamente ao garçom pelo cliente, um procedimento bastante comum e condizente com a inexistência de métodos de pagamento eletrônicos como o cartão de crédito ou débito. Na época, em regra, não existia a gorjeta imprópria, pois ela não era arrecadada pela empresa.
Num primeiro passo, ao interpretarmos o caput de forma literal, estabelecemos uma conexão clara entre o início e o fim do texto. Essa conexão destaca a afirmação de que “compreendem-se na remuneração do empregado as gorjetas que receber”. Assim, concluímos de forma inequívoca que a gorjeta é um direito inerente e exclusivo do empregado que a recebeu do cliente.
E, logicamente, isso fica ainda mais evidente, pois se as gorjetas recebidas pelo empregado compõem sua remuneração, não faria sentido elas serem incluídas na remuneração e, ao mesmo tempo, ele ficar somente com parte do que recebeu.
No entanto, a partir de 1954, com a introdução dos cartões de crédito no país, parte dos pagamentos passou a ser feita dessa forma, fazendo com que as gorjetas fossem necessariamente encaminhadas ao caixa.
Essa distinção entre as gorjetas pagas em dinheiro e as pagas em cartão criou uma situação complexa no contexto da legislação trabalhista.
Pagamento direto ao garçom
As gorjetas em dinheiro entregues diretamente aos garçons eram reconhecidas como parte de sua remuneração. No entanto, aquelas recebidas por meio de cartão frequentemente não eram tratadas de forma equivalente. Por consequência, muitas vezes não eram repassadas aos empregados, uma vez que os empregadores não as consideravam como gorjetas.
Criou-se então a necessidade de se regular a entrada da gorjeta no caixa da empresa para depois ser repassada ao funcionário. Em 28 de fevereiro de 1967, entrou em vigor o Decreto-lei nº 229, que inseriu na CLT o parágrafo terceiro, que trouxe a solução para quando a gorjeta fosse arrecadada pela empresa.
De acordo com o artigo 11 da Lei Complementar 95, um parágrafo na lei serve para complementar ou excepcionar o conteúdo principal (caput). Isso significa que as disposições adicionais devem ser vistas como extensões ou esclarecimentos do caput, sem alterar seu sentido fundamental.
E ao analisarmos o texto, notamos o advérbio “também“, que conecta as duas partes do parágrafo, confirmando que essa norma é complementar, pois explicita que a segunda parte possui a mesma nomenclatura da primeira, ou seja, gorjeta.
Segundo o parágrafo, o termo “gorjeta” abrange tanto a quantia dada diretamente pelo cliente ao empregado quanto o valor adicional cobrado pela empresa, desde que este seja destinado aos empregados.
Além do mais, o terceiro parágrafo valida e fortalece o argumento do caput, evidenciando a evolução temporal do contexto regulatório relacionado às gorjetas arrecadadas pela empresa.
Gorjeta não seria a todos os empregados
Mas uma leitura superficial do parágrafo 3º do artigo 457 da CLT poderia levar à conclusão equivocada de que a gorjeta é destinada a todos os empregados, contudo, como demonstraremos abaixo, essa noção é incorreta.
Iniciamos exemplificando como a compreensão precisa de termos específicos afeta a aplicação prática da lei. Essa análise detalhada oferece um vislumbre prático da interação entre a linguagem legal e sua implementação no cotidiano.
Focaremos primeiramente na palavra “cobrado”. É importante entender que, no contexto do texto, “cobrado” não se refere à exigência no sentido estrito, mas sim à prática de adicionar um valor à conta do cliente, conforme uma política pré-estabelecida pela empresa.
Avançando em nossa análise, direcionamos nossa atenção para a expressão “destinado à distribuição aos empregados”. Esta frase, ao ser utilizada no masculino, refere-se especificamente à expressão “o valor cobrado pela empresa”, e não se aplica à gorjeta espontânea ou direta.
Nesse caso, não seria lógico coexistirem duas formas distintas de retribuição ao garçom: se a gorjeta é paga diretamente em dinheiro, pertence integralmente ao garçom. Mas se processada pela empresa, seria dividida com outros empregados, uma dualidade que viola o princípio da igualdade.
Distribuição aos empregados
Prosseguindo com nossa análise, o termo “distribuição” merece uma atenção especial. Este conceito tem um escopo mais amplo do que simplesmente dividir algo entre várias pessoas, englobando a alocação de recursos, tarefas ou informações a indivíduos, grupos, departamentos de uma organização ou locais variados. Por exemplo, no contexto jurídico, “distribuição” refere-se ao processo de encaminhar casos judiciais para varas ou juízes específicos, baseando-se em critérios predefinidos, e não para todos. Por fim, distribuição não significa que todos receberão.
Quanto à palavra “empregados”, ela se concentra na categoria dos garçons, aqueles que recebem pagamentos dos clientes, em contraste com outros membros da equipe. Essa designação não implica automaticamente que todos os empregados sejam beneficiados, pois isso pode variar dependendo do contexto específico.
Esta expressão diferencia os benefícios voltados para os empregados de categorias como prestadores de serviço, autônomos ou indivíduos externos à organização.
Historicamente, a inclusão da expressão “aos empregados” visou a diferenciar a gorjeta de outras taxas com destinações distintas, como o couvert artístico, taxa de rolha ou ingressos, destinados à empresa ou artistas, e não confundidos com a gorjeta destinada aos empregados.
Interpretação alterada
Por fim, a remoção da frase “e destinado à distribuição aos empregados” do texto legal alteraria significativamente sua interpretação, pois qualquer valor cobrado pela empresa, seja como serviço ou adicional, poderia então ser considerado gorjeta e de propriedade do garçom.
E para corroborar que a gorjeta pertence exclusivamente ao garçom, encontramos uma legislação relevante que confirma nossa tese. No Rio de Janeiro, a Lei nº 7.841 de 10 de janeiro de 2018, voltada para o consumo, proíbe a cobrança de gorjeta em restaurantes a quilo, onde geralmente não há serviço de atendimento ao cliente. Contudo, a lei permite a cobrança de gorjeta em situações em que há pedidos feitos diretamente aos atendentes, como por exemplo, um refrigerante ou um suco. In verbis:
Art. 1º É vedado, aos proprietários de restaurantes e similares que explorem a modalidade de comércio de alimentos a peso, incluir taxa de serviço na conta do consumidor.
Parágrafo único. O disposto no Art. 1º não se aplica para os pedidos efetuados diretamente aos atendentes do estabelecimento.
Concluindo, a legislação, reforça a ideia de que a gorjeta somente existe quando um atendente ou garçom que prestou serviço direto ao cliente. Assim, fica evidente que a gorjeta não é apenas uma cortesia, mas um reconhecimento direto do serviço prestado, pertencendo, portanto, ao empregado que efetivamente realizou o atendimento e não a outros, mesmo que tenham participado da produção da refeição. Nesse sentido:
Cumpre esclarecer que o empregador não pode dispor da gorjeta para remunerar outros empregados que não aqueles que, como os garçons do estabelecimento, prestem serviços remunerados dessa forma, sob pena de a ele transferir os riscos do empreendimento. ( AIRR – 1169-76.2015.5.18.0161, Relator Ministro José Roberto Freire Pimenta, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 01/09/2017).
Embora a legislação seja clara ao estabelecer que a gorjeta pertence ao atendente ou garçom que prestou o serviço direto ao cliente, é prudente também considerar as diretrizes da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB), que só devem ser aplicadas na falta de uma legislação específica.
Direito de arena
De forma análoga, o direito de arena, conforme o artigo 42-A da Lei Pelé, exige que emissoras de TV repassem 5% da receita de transmissões para os atletas, similarmente às gorjetas que são pagas diretamente a quem presta o serviço. [2] Assim como as gorjetas, essa remuneração do direito de arena vai somente para os atletas, e não inclui os profissionais de suporte, como técnicos e médicos.
E nos costumes encontramos a confirmação que a gorjeta pertence a quem atendeu o cliente, notadamente o garçom. É fato notório que ninguém paga gorjeta para quem não o atendeu, muito menos para quem não viu. São exemplos, o restaurante a quilo, o buffet, o delivery, o take away e o drive thru, onde não há um atendimento personalizado.
Ninguém oferece gorjeta nesses lugares porque ninguém é servido. Afinal, quem já pagou gorjeta em um restaurante a quilo? Ninguém paga pelo produto e sim pelo serviço agregado ao mesmo, se não há serviço não há gorjeta.
E se há um costume que deve prevalecer é o do cliente que cria o fato gerador que é o oferecimento da gorjeta. Só ele pode decidir quem deve receber a gorjeta, desviar este ato para outros fins distorce a intenção original do cliente.
Por exemplo, se pais presenteiam professores específicos em uma escola como agradecimento, e a escola redistribui esses presentes entre todos os funcionários, isso contraria a intenção dos pais. Da mesma forma, se um cliente deixa uma gorjeta para um garçom específico e o gerente a redistribui entre todos os funcionários, a intenção original do cliente é desrespeitada.
Não se pode considerar como costume a imposição dos empregadores de ratear a gorjeta com a equipe que não atende o cliente, porque eles só fazem isso para que não tenham que remunerar dignamente esses empregados do próprio bolso, e assim estabelecem uma concorrência predatória nos restaurantes que não cobram gorjetas.
Opção do cliente
A decisão de oferecer gorjeta deve ser do cliente, pois ele é o agente criador do fato gerador desse ato. O cliente é quem deve decidir a quem a gorjeta deve ser destinada, e qualquer desvio dessa escolha pode alterar a intenção original do doador.
Similarmente, não parece justo que empregadores imponham a divisão de gorjetas com a equipe que não atende diretamente o cliente. Tal prática pode ser vista como uma maneira de compensar esses funcionários pelos baixos salários sem custo adicional para o empregador.
Em contextos de atendimento direto e personalizado, como com motoristas de aplicativos, barbeiros, lavadores de carro, carregadores de bagagem, montadores de móveis e equipes de mudança, as gorjetas são entregues diretamente pelos clientes.
Em contraste com as gorjetas, aqueles que executam tarefas indiretas, como o a operadora de caixa, o auxiliar de limpeza, ou mesmo quem abastece ou limpa um carro de aplicativo, quem mantém a limpeza no salão de beleza ou quem realiza a polimento de veículos em concessionárias, não recebem gorjetas dos clientes. Essa distinção ocorre porque, na percepção do cliente, esses serviços indiretos já estão inclusos no preço do produto ou serviço principal. Por exemplo, ao pagar por uma corrida de Uber, o cliente entende que o custo do abastecimento e limpeza está embutido no preço, assim como a limpeza está inclusa no serviço de um salão de beleza, o trabalho do estoquista e do caixa na operação de uma farmácia, e o carro polido e limpo na compra de um veículo.
Reconhecimento pelo serviço prestado
Em síntese, a análise do artigo 457 da CLT e das legislações complementares, como a do Estado do Rio de Janeiro, reforça a noção de que a gorjeta é um reconhecimento direto do serviço prestado pelo empregado ao cliente. Historicamente e legalmente, a gorjeta é considerada parte da remuneração do empregado que a recebe diretamente dos clientes, sendo essa prática refletida nas transações em espécie e, por analogia, nas transações eletrônicas.
A introdução dos pagamentos eletrônicos e as subsequentes adaptações na gestão das gorjetas não alteram o princípio fundamental de que as gorjetas são destinadas àqueles que prestam serviço diretamente ao cliente. Esta conclusão é crucial para orientar as práticas comerciais e a interpretação legal no contexto dos serviços de hospitalidade.
Portanto, enquanto a legislação e os costumes se alinham na identificação do destinatário legítimo da gorjeta, é importante que os empregadores e gestores de estabelecimentos comerciais respeitem essa destinação, garantindo que os empregados que interagem diretamente com os clientes sejam justamente remunerados pelas gorjetas que recebem. Esta abordagem não apenas respeita a legislação vigente, mas também valoriza o serviço personalizado que é a essência da hospitalidade e do atendimento ao cliente.
Fonte: Conjur